As duas margens do rio: uma história da Conquista da Paraíba
Nunca fora fácil navegar o Rio Parahyba. O curso entrançado, frequentemente interrompido por fechaduras e sumidouros, causava arrepios profundos em qualquer aventureiro que ousasse penetrá-lo. Em meio ao sussurro das matas, os bancos de areia vermelha que surgiam repentinos a cada légua mais pareciam armadilhas colocadas pelos Potyguara, que dominavam toda a margem norte. Desde 1501 os europeus sabiam bem que os “comedores de camarão” também não dispensavam uma boa carne humana.
Mas já íamos em 1574. Grandes regiões na margem Sul haviam sido conquistadas e a planície que o rio banhava pertencia oficialmente à Capitania de Itamaracá. Para os Potyguara, entretanto, isso nada significava. O contato com os colonos era quase sempre hostil e os poucos episódios de diplomacia haviam terminado em tragédia. Para o Reino de Portugal, as décadas de incursões malogradas e batalhas perdidas jogavam o peso de um fracasso sobre a Casa de Avis, agora governada pelo seu último herdeiro de apenas vinte anos, o Rei Dom Sebastião I.
Dom Sebastião havia assumido o trono com três anos de idade, após um longo reinado do avô, Dom João III, e de uma regência de oito anos da avó, Catarina da Áustria. As derrotas do avô e da consorte recairiam sobre o neto como deveres de honra, ao que se somava a crescente pressão da Côrte para que os problemas na rica Capitania cessassem. Àquela época, os únicos avanços bem-sucedidos haviam se dado através do escambo com os índios sulistas da tribo Tabajara, que haviam depois aderido à extração de pau-brasil, por eles chamado de ibirapitanga. Mas os entreveros dos povos da margem norte com os da sul prejudicavam o negócio, despertando a discórdia entre as tribos e a ira do donatário cujo domínio ali findava, o português Pedro Lopes de Sousa.
No indomado Norte do rio, as aldeias Potyguara se espalhavam por toda sua extensão e chegavam até a Serra da Copaoba, para as bandas de onde hoje fica Solânea. O planalto da Borborema era então governado pelo Cacique Iniguaçu, o “Rede Grande”, que tinha uma filha moça de nome Iratembé, índia cuja rara beleza — até hoje falada, precipita os eventos que culminarão na Conquista da Paraíba.
Entre causos e lendas, conta-se que, certa feita, chegou à taba de Iniguaçu um jovem mameluco de origem Potyguara, que vinha dos portos de Olinda. Ao ver a bela Iratembé e seus “lábios de mel” logo se quedou apaixonado, decidindo ficar na aldeia na esperança de um dia desposá-la. Com o tempo, Iniguaçu teria se afeiçoado do rapaz e enfim permitido o casamento, mas com uma única condição: ambos jamais poderiam partir da aldeia. O casal aceitou a condição, mas num dia em que o Cacique e seus filhos haviam ido caçar, tomaram ambos a mata, atravessaram o rio e fugiram juntos para o litoral.
Voltando da caça, Iniguaçu soube da fuga e encheu-se de fúria, ordenando que dois de seus filhos fossem ao resgate da moça. Após longa e perigosa travessia pelas terras sulistas, encontraram-na em Olinda com a ajuda de um corregedor de nome António Salema, que para evitar uma guerra de Iniguaçu contra a província ordenou que o jovem mameluco a devolvesse, o que foi feito às custas de sua vida.
De posse da irmã e de uma carta com o selo do Governador Geral lhes assegurando a passagem pelas fazendas que cruzassem, o trio tomou o caminho de volta para a aldeia. Mais tarde, quando caía o crepúsculo, chegaram a um grande engenho nas fronteiras da Capitania, perto de onde hoje fica Goiana. Era o conhecido Tracunhaém (do tupi tara-cuaém, que quer dizer “formigueiro”).
Tracunhaém pertencia a Dom Diogo Dias, um cristão-novo que fizera fortuna como mercador de açúcar e por ali ficara. Quando os irmãos Potyguara lhe mostraram o selo do Governador, em troca receberam não só a passagem, mas também comida e guarida pela noite.
Porém, tão logo o Sol nasceu os índios despertaram e não viram mais Iratembé. Outra vez a cunhatã havia desaparecido, desta vez confiscada pelo senhor do engenho num cômodo secreto da grande casa. Acuados pelos jagunços de bacamarte que queriam prendê-los, os irmãos escaparam dali e foram num só fôlego para a aldeia, onde narraram as desventuras ao pai. O Cacique Iniguaçu ouviu a tudo preocupado, pois conhecia aquele engenho e a riqueza do seu dono. Resolveu então enviar emissários para pedir que a filha fosse devolvida de maneira amigável. Mas Diogo Dias negou que ela estivesse em sua posse e dali escorraçou seus mensageiros, os proibindo de retornar ao engenho.
Dias e noites se passaram sem que houvesse notícias da nativa. Então Iniguaçu foi, ele próprio, em busca do Capitão-mor de Itamaracá, Frutuoso Barbosa, pedindo-lhe que intercedesse pela devolução da menina. Mas Frutuoso era sócio dos negócios de Diogo Dias e disse ao Cacique que nada podia fazer. Em silêncio, Iniguaçu voltou para o Norte, reuniu uma comitiva e foi ao acampamento dos franceses, que outrora já lhe haviam oferecido armas. Foi através destas armas que o cacique conseguiu reunir cerca de dois mil homens tanto dos seus domínios quanto dos sertões de cima, na atual região do Seridó. Dali a uns dias a hoste marchou junta pela noite rumo ao Tracunhaém, munida de tacapes, arcos e arcabuzes. Ao chegarem, os índios se empoleiraram nas cercas feito bacuraus e desceram rumo à casa grande, destinados a recuperar Iratembé.
Não havia como ser diferente: ao testemunhar a turba vermelha irrompendo, os jagunços do engenho empunharam suas armas e se puseram a atirar. Mas a fúria dos índios era implacável. Flechas cortaram a noite, pedras polidas voaram e tiros pipocaram à esmo, acertando os jagunços e incendiando os telhados do engenho.
Nesta noite, os Potyguara mataram e mutilaram todos os que viram pela frente, fossem nobres ou escravos, velhos ou crianças, homens ou mulheres. Não pouparam nem mesmo os animais. Ao cabo da madrugada, deixaram que o fogo consumisse toda a propriedade enquanto comemoravam a posse da mocinha resgatada. Do Senhor Diogo Dias e de sua família, só restavam as cinzas.
O Engenho do Tracunhaém estava tomado por urubus quando as primeiras autoridades chegaram. Ao menos seiscentos cadáveres apodreciam sob o Sol, empesteando as fronteiras de Itamaracá. Aterrorizado com a notícia, o Capitão-mor Frutuoso Barbosa escreveu ao Governador Geral Dom Luís de Brito, que por sua vez escreveu ao Rei Dom Sebastião clamando providências. Aquela era a gota d’água. A Coroa precisava reagir imediatamente ou a empresa colonial na região seria tomada pela aliança entre franceses e potyguaras. Ciente da dificuldade, o jovem Rei mandou que todas as forças da Capitania fossem mobilizadas até que os franceses fossem expulsos e que os índios responsáveis pelo massacre fossem capturados ou mortos. Ao final, quando vencidas estas batalhas, ordenava o Rei que uma cidade fosse edificada ali mesmo, nas margens do Rio, e que esta fosse fortalecida contra quaisquer inimigos.
Foi então que teve início a primeira das cinco expedições que seriam necessárias para impor domínio sobre o Rio Parahyba. Para comandá-la, o Rei convocou o próprio Governador-Geral do Brasil, Dom Luís de Brito, que, conhecendo o que o aguardava, sugeriu ao Rei que tentasse primeiro outra abordagem, mais diplomática, enviando alguém que os índios não conhecessem ou odiassem. Então o Rei escalou para o seu lugar o Ouvidor-mor Dom Fernão da Silva, militar e fidalgo que vivia em Lisboa, e lhe enviou para que tomasse as terras ao Norte do rio com o mínimo de resistência.
Veio então Dom Fernão acompanhado tanto das armas quanto de padres da Companhia de Jesus dispostos a adestrarem o espírito selvagem dos gentios. É graças às anotações de um desses padres, reunida no “Sumário das Armadas”, que pudemos conhecer essa história tão inglória para os portugueses. No registro Real não se conta muitos detalhes da emboscada sofrida pela expedição, que mal havia chegado na mata foi obrigada a debandar para Pernambuco toda furada de flechas. Não alcançaram sequer a Ilha da Restinga, que divide a foz salobra do Rio Parahyba em duas.
A notícia do vexame logo chegou à capital da colônia, São Salvador da Baía de Todos-os-Santos, de onde o Governador-Geral Dom Luís de Brito se viu forçado a assumir a tarefa. Em um mês apresentou à Coroa sua estratégia, que consistia em cercar a Ilha da Restinga com uma armada e sitiar a embocadura do rio, montando um cerco completo aos índios. Dado o aval, partiu da Bahia em setembro de 1575. Vinha com doze embarcações de vários tamanhos, mas às vésperas de chegar à foz do Parahyba a armada foi surpreendida por terríveis ventos opostos e uma negra tempestade. Frágeis sob a força dos vagalhões, as caravelas embicavam e perdiam seus mastros e velas, chocando-se contra as naus, derrubando os batéis e logo em seguida naufragando. A própria nau-mãe que carregava Dom Luís se desgarrou e ficou semanas à deriva no Atlântico, até ser levada de volta ao Porto Seguro.
Desmoralizada e prejudicada em seus negócios, a Côrte Portuguesa exigia uma atitude do Rei. A fama de impenetrável do Rio Parahyba já durava décadas e nem os versos triunfais d’Os Lusíadas, à época recém publicados em honra à Dom Sebastião e sua Dinastia, removiam o incômodo presente na realeza. A foz indômita do rio era um espinho sob o pé do Monarca, que por aquela hora resolveu rever todo o sistema administrativo das capitanias hereditárias. Em 1577, Dom Sebastião devolveu o Brasil ao antigo sistema de um só Governo-Geral. Nomeou Diogo Lourenço da Veiga para o cargo e lhe entregou a missão de preparar a terceira expedição para o norte do rio.
Lourenço da Veiga aportou em São Salvador no início do ano seguinte. Imediatamente, procurou os padres da Companhia de Jesus e com eles realizou longas expedições de reconhecimento pelo sertão. Subiu pelo leito do São Francisco na companhia de José de Anchieta, que lhe mostrava as aldeias catequizadas e os povoados livres que começavam a surgir. Testemunhou ali o nascente Brasil, brotando feito macaxeira no chão rubro e fértil das nascentes. Conheceu, enfim, a dádiva do Velho Chico e suas afluências.
Por volta do meio do ano a empreitada de Lourenço da Veiga chegou ao Rio Pajeú e ali o Padre Anchieta lhe apresentou os índios cujo nome verdadeiro não sabemos, mas que se tornaram conhecidos na história como Tabajaras (do tupi, “Inimigos”). Os Tabajara foram os primeiros índios do agreste a conhecerem os conquistadores e foram também os primeiros a com eles selarem a paz. Anchieta contava que eles haviam se batizado e que agora queriam defender as missões contra os povos do norte, dos quais se ouvia as piores notícias. O Governador observou como os índios haviam se misturado com os colonos no trabalho, como participavam na missa, e viu que a chegada dos Jesuítas com suas escolas dava bom frutos, notícia que muito alegraria ao Rei.
Uma missiva foi enviada a Dom Sebastião em julho de 1578, mas jamais chegou em suas mãos. O jovem Rei havia acabado de zarpar no Mediterrâneo para uma épica batalha no norte do Marrocos contra os mouros saadianos. Foi no deserto do Alcácer-Quibir, cenário do único embate, que o exército islâmico aniquilou as forças portuguesas em apenas um dia: 4 de agosto, dia em que o Rei Dom Sebastião desapareceu para não mais ser visto, deixando vago o trono do império ultramarino.
Em Portugal, o destino inaudito do jovem Rei jamais seria completamente assimilado (ainda hoje se aguarda o seu retorno), mas sua empreitada contra os Mouros passaria à história das batalhas mais insólitas, dessas que só se justificam pelo arroubo da juventude. Dom Sebastião queria viver as glórias que Camões narrava; queria vitórias a qualquer preço, nem que isso custasse, como acabaria custando, a soberania do seu Reino. Solteiro e sem filhos, Sebastião era o último da Casa de Avis, e sua queda inaugurava uma crise de sucessão que só não superava a financeira. Sobraria para o Cardeal Dom Henrique, seu tio-avô já moribundo, ocupar o trono enquanto lhe restasse vida.
O Rei Henrique I de Portugal e Algarve, o “Rei Casto”, passaria apenas dezessete meses no trono. Sua última missão de vida seria dar continuidade à campanha do sobrinho-neto pela conquista do Rio Parahyba e enfim consagrá-lo à Fé Católica. Pelo jovem Sebastião, o “Rei Adormecido”, de quem ele próprio fora o tutor de fé, Dom Henrique preparava-se para enviar ao Brasil quatro de suas maiores naus, todas devidamente equipadas com a mais pesada artilharia. Mas antes disso lhe apareceu um súdito do Brasil com uma oferta: Frutuoso Barbosa, o Capitão-mor amigo do senhor de engenho Diogo Dias, a quem o Cacique Iniguaçu havia pedido ajuda, vinha aos pés do Monarca prometer que derrotaria os Potyguara e os expulsaria da Restinga somente com as forças que possuía na Capitania, sem custos à Coroa. Pedia, em troca, que o Rei lhe fizesse Governador-geral do território conquistado e que lhe concedesse um mandato de dez anos.
Não tão bruto quanto ambicioso, Frutuoso de fato conhecia os Potyguara como nenhum militar que havia naquela terra, e portanto discordava da política tolerante de Lourenço da Veiga, a quem havia advertido que Potyguaras não são como Tabajaras, dóceis e submissos. Assim, quando Dom Henrique I acatou seu pedido, Frutuoso frustrou o plano de longo prazo da companhia Jesuíta, de atravessar o Rio somente com a Cruz, e partiu de Lisboa para o Brasil ao troar de canhões, dando início a terceira expedição rumo à conquista do Parahyba, agora pela margem norte.
Era 1579 quando avistaram a Nova Lusitânia, então Capitania de Pernambuco. Uma bruma escura pairava antes do porto de Olinda. Sobre o leme, a seis por hora, Frutuoso Barbosa navegava ao lado do filho e da esposa, que desembarcariam logo a seguir. Entretanto, pouco antes de alcançarem o porto Frutuoso viu surgir no horizonte a silhueta terrível de Tupã, roubando-lhe o céu. Num átimo, toda a armada estava envolvida por uma densa nuvem cor de chumbo, que tornava o ar dos marujos quase sólido. Foi quando os primeiros relâmpagos cegaram as vistas e os raios chicotearam o horizonte. Imediatamente, longos e profundos trovões que mais pareciam vir de baixo tonitruaram, indicando que o melhor, naquele momento, era rever o curso. Mas já estavam tão perto de Olinda, de Itamaracá… o Parahyba era logo ali…
E caiu a tormenta. A bruma que cercava os navios deu lugar a uma ventania de mormaço. Tal como na Escritura, o céu rasgou-se em torrentes pesadas que não cessavam nem diminuíam. Vagalhões lavavam os conveses, sacudindo os marujos pros lados, atirando-lhes ao mar. Muitos se perderam para sempre. Frutuoso, vendo a esposa em desespero, guinou a nau a bombordo e decidiu fugir para o Oceano. Completava a manobra quando um escarcéu lhe atingiu à meia-nau e invadiu a cabine, ferindo seu filho e levando embora sua mulher.
Avariada e impraticável para a guerra, a nau do Capitão-mor se viu à esmo no mar aberto até conseguir encontrar as Antilhas. Mais uma vez a maldição se revelara; o Parahyba permanecia odiosamente invicto.
Agora viúvo e humilhado pelo fracasso, Frutuoso Barbosa transformou a ambição política em ira e desejo pessoal de vingança. Com o pouco que lhe sobrava, embarcou novamente rumo à Metrópole disposto a se colocar mais uma vez à serviço do Rei, desta vez sem pedir nada, queria apenas concluir a missão custe o que custasse. Porém, de volta à Lisboa encontrou um trono vago. O Cardeal Dom Henrique havia falecido, encerrando de uma vez por todas a Dinastia de Avis que governava Portugal havia quase 200 anos. A por vezes sangrenta disputa pelo trono encontrava-se entre Dom Antonio de Castro, um filho idoso e bastardo do Rei Dom Manuel, o “Venturoso”, e Filipe II, o Rei da Espanha e neto legítimo de Dom Manuel por parte de mãe. Embora a reivindicação sanguínea do bastardo fosse mais forte, lhe faltava dinheiro e apoio político da nobreza e do clero, que acharam como solução a unificação da Península Ibérica numa só monarquia. Nascia assim a União Ibérica, que governaria todo o mundo hispânico e lusitano, e nele o Brasil, pelos próximos sessenta anos.
Em 1581, tão logo Filipe II ergueu o cetro, o já velho Frutuoso Barbosa veio pôr-se aos seus pés, implorando por uma nova chance. O apelo funcionou. Semanas mais tarde, Frutuoso estava de volta ao Brasil para comandar a quarta expedição oficial para dar conta dos Potyguaras. Mas desta vez não vinha sozinho. Dono da marinha mais poderosa daquele século, Filipe II havia planejado uma operação de duas frentes que contaria, pelo lado espanhol, com a armada do seu General Diogo Flores Valdez, que cumpriria a missão de invadir o rio pelo mar. Já Frutuoso deveria vir por terra, partindo de Pernambuco pela mata dos Tabajaras com uma tropa de duzentos cavaleiros. Ambos deveriam se encontrar na foz, cercando a Ilha da Restinga e juntos obliterariam qualquer gentio que por lá estivesse.
Seguindo a estratégia d’El Rey, a missão demorou longos dois anos para ser preparada. Porém, no dia do assalto a ilha da Restinga estava inesperadamente vazia. O General espanhol foi o primeiro a aportar com seu batel, ao que suas nove naus montaram guarda à meia-distância, exibindo nas velas a Cruz da Ordem de Cristo. Em seguida chegou o Capitão português a cavalo, com seus mosqueteiros de armadura e escudos cruzados. Os comandantes se encontraram no meio da praia, cumprimentando-se e declarando aquele primeiro posto já conquistado. Mas uma corneta soou ao longe. Do convés, uma fila de arcabuzes tomava posição, apontando para a movimentação que crescia na mata. Então caiu uma flecha, depois outra, depois centenas de flechas escureceram o céu e foram varando, um a um, os escudos das tropas e por vezes também os capacetes.
Mas dessa vez os ibéricos estavam mais bem preparados. A reação foi instantânea e, quando os primeiros canhões rugiram, os mosquetes já faziam a festa derrubando os vermelhos pelas margens do rio. Em meio a gritaria e explosões, as flechas dos índios se acabaram primeiro, revertendo o confronto num massacre europeu. Ao final da batalha, os espanhóis puseram-se a comemorar a vitória com seu General como se houvessem vencido a guerra. Mas Frutuoso, que havia combatido ao lado do filho que naquela hora sofria de febre, ainda olhava soturno para a floresta. Sua experiência com os Potyguara o aconselhava a comedir-se.
De posse da Restinga, o General Valdez reuniu os homens que estavam ilesos e ordenou que erguessem, na faixa peninsular que havia logo à frente, atual Cabedelo, uma primeira bastilha. O trabalho foi feito às pressas e de forma rudimentar, mas garantiu aos ibéricos a permanência na ilha, sem a qual jamais poderiam avançar para o norte. Uma vez erguido o Forte, Valdez lhe batizou com o nome de São Filipe e São Tiago em honra aos padroeiros dos dois reinos e entregou seu posto de comando ao Capitão de infantaria Francisco de Castrejón, partindo depois para Portugal. Castrejón era o responsável pela frente espanhola, que contava com cerca de cento e sessenta homens. Já o lado português, com apenas cinquenta, continuava com Frutuoso Barbosa, que ansiava vencer a guerra e fundar ali sua Capitania.
Mas os dias vindouros impuseram ao seu plano um insólito obstáculo. A vida no Forte era difícil. O tempo passava lento na ilha e lusos e castelhanos se desentendiam com frequência, impedindo que o trabalho na fortificação avançasse a contento. Distraídos com brigas e duelos, os homens não viram o cerco de centenas de nativos se montando ao redor da ilha. Quando deram por si estavam presos, sem acesso seguro às fontes d’água doce e aos peixes do rio. Os poucos barcos deixados pela armada foram logo surrupiados. Diante da situação, não lhes restava nada pois racionar a comida e esperar um resgate que talvez nunca viesse.
O interior do forte empesteava. A babel de homens famintos se arreliava a cada hora, ao que a partilha desigual de suprimentos não ajudava. Quando começaram a matar os cavalos, a carne não chegava a todas as bocas e os mais fracos eram obrigados a enfrentar o breu da noite se quisessem encontrar comida, sempre arriscando eles próprios a virarem tal.
Sitiados, morrendo feito moscas, muitos se rebelaram e resolveram enfrentar as matas com seus mosquetes, quase sempre sem sucesso. Mas foi através de um desses loucos que conseguiu retornar ao Forte que todos ficaram sabendo de um inesperado advento: aqueles índios não eram apenas Potyguaras do Norte, mas também Tabajaras do Sul do rio, pertencentes à tribo de um Cacique católico de nome Pyragibe, o “Barbatana”.
Frutuoso o conhecia. Vinha do litoral Sul da Capitania, ali para as bandas de onde hoje é Alhandra, Taquara e Jacoca. Alguns anos antes, membros da sua aldeia que se viam escravizados numa propriedade se revoltaram e mataram seus captores, tornando-se foragidos da justiça. Desde então, Pyragibe errava pelo agreste da Capitania, conhecendo os povos das duas margens do Rio, entre os quais o Cacique Iniguaçu, pai da bela Iratembé, e o jovem Cacique Guyratebira, o “Repouso dos Pássaros”, que chefiava uma aldeia Tabajara na várzea do Sanhauá, ao sul do Rio Paraíba. Em sua passagem por este afluente, Pyragibe e sua tribo acabaram se assentando nos pântanos férteis dos manguezais, ali onde hoje é João Pessoa.
Agora, o velho ermitão chegava à foz do rio para enfim selar uma aliança tática com os Potyguara, seus naturais e mais antigos inimigos.
Dentro do Forte colapsado, o Capitão Castrejón traçava um desesperado plano de fuga para que um de seus marinheiros escapasse ao cerco e chegasse a Olinda. Não se sabe quantas distrações foram precisas, mas o fato é que o plano deu certo e a notícia chegou ao Ouvidor-geral do Brasil, Martim Leitão. Enquanto algum maltrapilho lhe descrevia o cerco, o Ouvidor calculava o estrago que uma aliança entre Potyguaras e Tabajaras faria àquela que, naquele momento, era a maior das empreitadas reais. Para Filipe II, a conquista do Parahyba não era somente um dever de estado, ou mesmo uma questão econômica. Significava também superar a Casa de Avis e ser enfim reconhecido com Rei em Portugal.
Sabendo disso, Martim Leitão reuniu o maior exército já visto em Nova Lusitânia. Convocou os capitães, tenentes e alferes da Capitania, recrutou índios, escravos e até mesmo padres, formando uma frente de batalha inteiramente nova. Por terra y mar, partiu com ela ao resgate de São Filipe e São Tiago. E aí começava a quinta, derradeira e mais longa expedição para a conquista do Parahyba, na qual enfrentaria os deuses e diabos daquela terra vermelha. Era o mês dos Santos Populares, do ano de 1585 do Nosso Senhor Jesus Cristo. A cruzada de Martim Leitão atravessava a floresta com facilidade, debelando escaramuças uma a uma, matando um sem fim de gente. Diante do poderio e da presença da Igreja, muitos guerreiros Tabajaras optavam por abrir caminho, permitindo que o Ouvidor chegasse ao Forte antes do previsto e libertasse os famélicos combatentes, agora reduzidos a um pequeno pelotão.
Frutuoso Barbosa encontrava-se esquálido e insano, balbuciando o nome do filho que dias antes havia sucumbido às mazelas mortais da Ilha. Levaram-lhe de volta à Olinda para que se tratasse, mas a marcha seguiu para o Norte sob comando do Capitão João Pai Barreto, invadindo as terras Potyguara e chegando à temida Acaîutebiró, a “Baía da Traição”, local onde 84 anos antes um grupo de marujos portugueses havia sido seduzido para a morte e virado comida de índio. Naquela região de mata espessa e solo movediço, travou-se a batalha que vingou estas almas perdidas. Ali, todos os Potyguara que não calharam de fugir a tempo acabaram igualmente comidos, desta feita não por gente, mas pelos vermes e crustáceos do escuro manguezal. O impenetrável norte do rio estava enfim deflorado pelas tropas híbridas e Cristãs do Rei Felipe II. Faltava conquistar a foz.
No retorno ao Forte, sob ordens de Martim Leitão, João Pai Barreto incendiava as aldeias que encontrasse, destruía as plantações e matava as criações de animais. Arrasava a terra inteira para evitar que seus fugitivos voltassem a ocupá-la. A tropa trazia consigo filas de prisioneiros amarrados pelos pés e pescoços, aos quais se destinava o trabalho forçado na fortificação das margens. Mas ao cruzarem os platôs do litoral avistaram uma espessa fumaça vinda da Ilha da Restinga. Chegando mais perto, testemunharam o Forte de São Filipe e São Tiago sendo tomado por chamas. Centenas de índios de várias matizes gritavam em zombaria, apontando os arcos para a silhueta dos europeus. Guerreiros Tabajara dos caciques Itagiba, Mandiocapuba, Batatan e Caragatim, estavam ali juntos com Potyguaras das tribos de Iniguaçu, Miquiguassu, Caraguinguira, Cipouma, Tiquarussu, Mitaraoby, Pynacama. Era o inferno sobre a terra recém restaurada e o provável fim de mais uma expedição.
Em retirada, os europeus tomaram a rota segura da praia e já chegavam a Nova Lusitânia quando dois jovens Tabajaras se abordaram da comitiva a cavalo, ambos de braços erguidos. Vinham em paz, mas traziam nos olhos uma profunda agonia. Exasperados, contaram ao Capitão João Pai Barreto do que acontecera imediatamente após a destruição do Forte: naquele instante, vendo os europeus debandarem, os Potyguara notaram-se em grande maioria na Ilha e puseram-se a cercar os Tabajara, confinando-os nas ruínas. Agora mantinham cativos todos os chefes que a eles haviam se aliado, exceto Pyragibe e Guyratebira, e só não os havia matado porque pretendiam comê-los de um por um.
A marcha dos europeus prosseguiu em posse dos mensageiros até encontrar Martim Leitão, que ouviu a história com um renovado entusiasmo. A nova traição dos Potyguara significava o fim da aliança entre a margem Norte e a margem Sul, o que os conquistadores da terceira margem poderiam certamente explorar. Então o Ouvidor-geral procurou o combalido Frutuoso Barbosa e lhe propôs uma aliança com Pyragibe para expulsar, de uma vez por todas, os Potyguara do Rio Parahyba. Frutuoso delegou a missão ao seu camarada de longa data, o escrivão João Tavares, cuja experiência em batalhas só não era maior que sua habilidade com as palavras.
Era dia 3 de agosto de 1585, véspera do aniversário de sete anos do sumiço de Dom Sebastião, o jovem Rei cujo retorno era sempre esperado. Promovido a Capitão-mor por Martim Leitão, João Tavares reuniu novamente o exército da quinta expedição e partiu para a embocadura do rio Parahyba. No caminho encontrou Pyragibe com suas hostes tabajaras cheias de ódio. O Cacique estava decidido a estraçalhar os traidores do seu povo, ao que João Tavares jurou ajudar com toda sua força. Então se apontaram as flechas e canhões para a Restinga e os dois comandantes penetraram juntos a garganta do Rio. Em um dia de cruenta batalha, quebraram o sítio montado pelos potiguara e os repeliram para o norte debaixo de chumbo, deixando um rastro de sangue que até hoje tinge a mata. Terminava assim a hegemonia Potyguara sobre a indômita foz do Parahyba.
No dia seguinte o primeiro Sol das Américas despontou na Restinga, enquanto as ondas doces e salgadas lavavam o sangue da praia. Em agradecimento à ajuda do Capitão João Tavares, o Cacique Pyragibe ergueu as barbatanas e retirou da cabeça seu imenso cocar, oferecendo-lhe ao português. Em troca, João Tavares lhe presenteou com uma adaga cravejada de pedras preciosas que carregava à cintura, firmando uma aliança que duraria para sempre. Naquele dia ensolarado, dia de Dom Sebastião, os guerreiros vitoriosos celebrariam até o cair da tarde, mas sem nunca descansar a vista das sombras na margem norte. Ali habitava um antidestino que por muitos séculos dividiria os corações paraibanos: vítimas ou algozes, heróis ou vilões, quem eram os Potyguara? Para onde fora o indócil espírito antropofágico que governava aquele Rio?
Sempre olhando para trás, parte da coalizão que libertara a Restinga tomou a margem norte e caminhou com os Caciques Pyragibe e Guyratebira para o interior, rumo às terras de seu povo. Iam com eles o Capitão João Tavares, dois padres Jesuítas e um engenheiro, além da força braçal de brancos, pretos, vermelhos e mestiços brasileiros. Na manhã do dia 5 chegaram ao vale do Rio Sanhauá, braço mais forte do Parahyba cujo nome significa “água limpa e clara”. Guyratebira seguiu para a sua aldeia mais ao Sul, um páramo que ainda hoje, mais de quatro séculos depois, ostenta o traço de seu nome: Guarabira. Já os demais aportaram logo acima, numa colina viçosa de onde se podia ver todo o afluente.
Foi neste posto privilegiado que os Jesuítas ergueram e fincaram a Santa Cruz, inaugurando a missão dada anos antes por um jovem Rei, de fundar ali uma cidade e fortificá-la contra quaisquer inimigos. Celebraram então a primeira missa, consagrando o bendito chão à Nossa Senhora das Neves e dando este nome à futura Cidade Real. Nascia assim a Capitania ultramarina da Paraíba, que seria governada pelo velho Frutuoso Barbosa e depois por João Tavares, ao mesmo tempo em que nascia a terceira cidade mais antiga do Brasil, que hoje ostenta o nome de João Pessoa.